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[Crônica] Noite Feliz

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Dia 24 de dezembro sempre é um dia especial e totalmente fora do comum, é o dia que a família se reúne, a mesa fica farta de coisas gostosas e aquele tio chato sempre aparece para soltar uma piadinha sem graça.

Não sei se é o normal de todo mundo, mas aqui em casa os preparativos para a véspera do Natal são bem grandes, além da minha mãe passar o dia todo ajudando minha avó na ceia, a gente sempre escolhe aquela melhor roupa para passar a data especial. Desta vez eu estou particularmente ansiosa por esse dia, finalmente cumpri a meta de emagrecer. Sabe aquelas metas que a gente faz para o Ano Novo? Emagrecer sempre esteve no topo delas, e sempre era a primeira que caia fora. Só que esse ano eu prometi que ia ser diferente, e foi. Desde fevereiro comecei uma dieta e perdi 20 quilos! Sempre sinto um grande orgulho quando falo disso. E dessa vez comprei um vestido com a gola alta, sempre achei lindo, mas meus seios eram enormes e eu me sentia um bujão de gás encapado quando experimentava um desses. Minha mãe detestava quando eu me comparava com o gás, ela dizia que era exagero e que eu estava linda, é claro que na minha cabeça aquilo não passava de um elogio de mãe.

Enquanto visto meu lindo vestido me lembrei do chato do meu tio Édson que todos os anos insiste em fazer piadinhas sem graças com o meu peso, o tamanho do meu prato na ceia, a quantidade de sobremesa que eu como. Ele é daquele tipo de pessoa que quer arrancar risada dos outros a qualquer custo, dane-se se ele está ferindo o alvo da gozação. Não sei quem é pior, se é ele ou quem ri das bobagens dele. Nem sei se ele solta piada sobre as outras pessoas, odeio tanto que ele faça isso comigo que nem me permito ouvir as outras besteiras que ele fala. Foram várias as vezes que discuti com a minha mãe, chorava dizendo que ela não me defendia, que eu era filha dela e ela não podia deixar o irmão dela fazer aqui comigo. Depois da primeira vez que chorei ela passou a me defender um pouco mais, mas nada que fosse o suficiente para fazer as piadas acabarem. Mas muito bem, vamos ver o que ele vai falar hoje, já que emagreci e vou comer pouco, pois não quero exagerar saindo tanto da dieta.

Para variar demoramos para sair de casa e chegamos atrasados na casa da minha avó, a família quase toda já está lá. Quando entro na sala a tia Márcia, que mora longe, corre e me abraça:

_Paula minha filha, como você emagreceu!!

Meu sorriso dá voltas no meu rosto, ele sempre faz isso quando alguém percebe minha perda de peso. E ela emendou:

_O que aconteceu, ficou doente?

Sério, eu queria saber o que minha avó fez, porque a minha mãe é o único filho com noção que ela teve.

_Não tia, emagreci com dieta mesmo.

_ Ah, mas para quê tudo isso? Já está magra demais.

Só pode ser brincadeira, ainda preciso perder 10 quilos e ela vem dizer que estou magra demais. Foi aí que lembrei que ela era incapaz de elogiar alguém que não fossem os filhos dela. Não importa o quão grande foi seu feito, ela vai encontrar um defeito e citá-lo ao invés de elogiar. Deve ser triste viver assim. Fui em direção aos meus primos e rapidamente esqueci o comentário infeliz.

Já passou da meia noite e a mesa da ceia começa a ficar pronta, lá está o peru, o chester, o salpicão da tia Márcia (pelos menos alguma coisa boa ela sabe fazer), o risoto e mais algumas delícias disputando por um lugar na mesa. Enquanto pego meu prato fico encarando a mesa na tentativa de me decidir o que vou escolher, coloco um pouco de chester, mas o lagarto está com uma cara tão boa, pego um pouco também. O salpicão da tia Márcia está tão bonito e tão saboroso, que ele está quase me chamando pelo nome. Peguei um pouco também, espero o ano todo por aquele salpicão lotado de maionese, não podia perder a oportunidade, acho melhor colocar um pouco mais. Enquanto meu prato vai ficando cada vez mais recheado vem aquela voz estridente:

_ Nossa, será que a Paulinha vai deixar um pouco para quem vem atrás dela? Calma menina, parece que a mesa todo tá no seu prato.

Fiquei com tanta raiva que disparei sem pensar

_ Porque que ao invés de se preocupar com o meu prato, você não olha para o da sua filha? Tá bem maior do que o meu.

Parece que finalmente eu consegui deixar ele sem graça, ele e a filha. Não gostei de fazer isso com a Dani, ela não tinha nada a ver com a minha birra com ele. Pensando bem, tem sim, ela nunca repreendeu o pai de fazer “brincadeiras” comigo, e, além de não repreender ela ainda riu dos insultos que ele me falava.

Fiz cara de paisagem e sentei no sofá com o prato. Não sei como o tio Édson consegue viver insultando os outros, passei quase uma hora com peso na consciência por ter falado do prato Dani. Acho que ele nem deve ter consciência. Fiquei com receio de ela vir me rebater e me chamar de gorda, e por isso fiquei criando mil argumentos na minha cabeça, já tinha uma resposta para cada coisa que ela possivelmente me falaria. Pelo visto ela não se incomodou, ou fingiu que não, como eu fiz durante todos os anos. Ela não me disse nada e ficamos todos tranquilos comendo.

Logo depois de um tempo minha avó surge com uma bandeja repleta de pequenos pedaços de paraíso envoltos em canela e açúcar, as maravilhosas rabanadas. Acho que não comentei nada, mas eu sou louca por rabanadas, ainda bem que elas só aparecem uma vez por ano. E eu nunca comi rabanadas melhores que as da minha avó. Ai que tentação. Antes de vir eu me prometi que ia comer apenas uma e que ia ser a menor que tivesse. Cumpri o prometido, escolhi a menor e comi dando pequenas mordidas, na esperança que ela demorasse mais para acabar. Até parece, ela era tão pequena que em três mordias eu terminei. Fiquei sentada como as mãos sobre os joelhos enquanto me debatia internamente com a grande questão: pego mais uma ou não? Enquanto eu estava profundamente mergulhada nos “prós e contras” da minha decisão final, minha avó interrompeu:

_ Não vai comer mais Paulinha?

_ Já comi vó, tava uma delícia.

_ E não vai comer mais por quê?

Ela ficou me olhando sem entender o motivo da minha recusa em comer mais rabanada, e o olhar dela destruiu todos os argumentos “contras” que eu tinha e peguei mais uma. Dessa vez fui mais esperta e não peguei a menor. Acho que a cada ano que passa elas ficam melhores, e não resisti e peguei outra. Chamei minha mãe no canto e pedi para ela levar umas para a casa. Demorei um ano para perder 20 quilos, não ia ser em algumas mastigadas na noite de natal que eu ia recuperar todos eles.

***

Desconheço dia mais preguiçoso do que 25 de dezembro. Acordei quase na hora do almoço, comi e depois me olhei no espelho. Não vi diferença nenhuma. Depois de um tempo voltei para a cozinha, e enquanto procurava meu pequeno tesouro me lembrei da minha falsa promessa de comer pouco no dia anterior, e então me lembrei do lagarto e do salpicão maravilhosos que comi ontem. Não me arrependo nem um pouco de ter quebrado a promessa. E estou aqui pensando bem, mesmo não comendo pouco, ainda comi menos do que nos outros anos. Não foi de acordo com a minha dieta, mas foi bem menos do que comia anteriormente. Resgatei minhas rabanadas guardadas e também não me arrependo nem um pouco de tê-las comido ontem e também não vou me arrepender hoje. Amanhã é outro dia e começo minha rotina de novo. Tenho certeza que ia ficar frustrada de ter me privado em uma noite tão especial. Afinal de contas, eu já me privei tanto o ano inteiro que seria injusto não ter uma pequena folga no Natal.

 

** A sessão Passagens do Cotidiano reúne pequenas histórias de ficção baseadas nos fatos rotineiros que acontecem com todas nós que decidimos mudar os hábitos. Elas sempre estarão com a sigla [PDC] antes do título para facilitar a identificação.

Tem 29 anos, é de Brasília e já se divertiu muito por aqui. Com o passar da idade sentiu que ficou cada dia mais difícil saber quais são os locais que valem a pena sair de casa. Por isso decidiu colaborar com quem também está em busca de boas opções para se divertir, comer ou descansar em Brasília.

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